O sonho do tigre – Colleen Houck ?>

O sonho do tigre – Colleen Houck

Ren e Kelsey voltaram ao futuro depois da derrota do feiticeiro Lokesh para viverem seu “felizes para sempre”. Kishan, por outro lado, ficou para trás ao lado da deusa Durga, para servir como seu tigre. O relacionamento entre os dois é ruim, para dizer o mínimo, então quando o xamã Phet aparece pedindo a ajuda do tigre negro, Kishan vê na oportunidade uma chance de mudar seu destino.

A sua missão o levará para o futuro para salvar Kelsey, mas também para o passado ainda mais distante, para ajudar uma criança chamada Anamika que virá a se tornar a mulher de olhos verdes em quem Kishan não consegue parar de pensar, a deusa da qual ele não consegue se afastar.


Para uma fã de longa data de A maldição do tigre, eu até que demorei bastante para ler o último livro da série (e 10 meses para resenhar). Claro, esse quinto livro saiu em 2018, cinco anos depois do fim “oficial” da série. Eu não duvido que tenha sido uma tentativa de reviver o amor dos fãs por esses livros, já que nenhuma outra história da Colleen Houck teve tanto sucesso como a de Kelsey, Ren e Kishan. Outros autores retornaram e seguem retornando aos universos aos que devem sua fama – Rick Riordan, Suzanne Collins, Christopher Paolini. Colleen Houck falhou na empreitada e entregou um livro ruim que caiu no esquecimento do fandom. Sua escrita se tornou outra coisa também – a autora esqueceu o quão importante o ritmo de uma história é, evidente na falha em saber onde começar e terminar capítulos.

E já aviso aqui que essa resenha conterá spoilers porque eu preciso comentar absurdos e eu não quero que ninguém leia esse livro de qualquer jeito, ok?

Pra começar, deixo aqui a minha indignação com essa capa que quebra completamente o padrão da série ao ilustrar pessoas (e um total whitewashing de indianos, que ocorre também na própria história). Isso já tinha acontecido naquele spin off da Nasuada e eu já não tinha gostado. E eu sei que a deusa Durga tem vários braços, mas essas três mãos perdidas só parecem que a arte foi criada por IA.

O sonho do tigre é um livro que tenta bancar da nostalgia dos leitores para que todos voltemos a nos apaixonar pelo típico personagem bad boy tão amado em 2010. Nos velhos tempos, Kishan era charmoso, um bom partido, um ótimo personagem para um ângulo amoroso (porque para ser um triângulo, pelo menos uma das pessoas tem que ser gay). Em O sonho do tigre, ele se apaixona por uma criança.

Perdão, me deu ânsia.

Ele tem cada fala sobre a Anamika criança que é de deixar o cabelo em pé. E ele fala o mesmo da Kelsey com treze anos também. Em uma tentativa de mostrar o quanto o Kishan se importa com as mulheres de sua vida, a autora conseguiu mesmo é transformá-lo em um pedófilo. E pior, ele é machista.

No entanto, o que eu queria era uma mulher de verdade. Carinhosa, suave e amorosa. – Página 47

Eu não tenho o livro aqui comigo então não posso citar as pérolas completamente insanas desse livro. É fala preconceituosa em cima de fala preconceituosa sobre tudo o que você pode imaginar, principalmente sobre mulheres.

Eu acho que nunca tinha visto um autor acabar com o seu universo inteiro em um livro de 600 páginas (longo demais, por sinal). Primeiro, é impossível gostar do Kishan, ponto. Isso é O sonho do tigre, pelo amor de Deus, e não Lolita (um ótimo livro do qual eu nunca fiz resenha, por sinal). Segundo, a orelha do livro diz que é bem pesquisado sobre a cultura indiana, mas ler a página da Wikipédia sobre comida indiana e colocar uma ou outra coisa no livro não é pesquisa.

De uns anos para cá, muito se fala de autores brancos escrevendo sobre culturas das quais eles não sabem nada (muito se fala de A rebelde do deserto e eu sou hater de carteirinha do segundo livro de O castelo animado). O sonho do tigre é um desrespeito ao hinduísmo ao esquecer que essa é uma religião muito mais antiga que o cristianismo que segue sendo praticada. Como que a Anamika pode ter morrido no final do livro por não ter seguidores se o Durga Purja segue sendo um dos maiores festivais do norte da Índia? Sabe como eu descobri isso? Em 30 segundos pesquisei “Durga” no Google e entrei no site da Britannica. Mas ninguém vem aqui falar que as minhas resenhas são “bem pesquisadas”, não é mesmo?

E digo mais! Sabe todos aqueles templos lindos que nossos personagens principais visitaram no resto da série? Todos eles foram criados pelo Kishan e envelhecidos de propósito uns 5 minutos antes de todos eles chegarem com os poderes da viagem no tempo! Afinal, pessoas reais nunca cultuaram esses deuses, não é mesmo?

VAMOS PARAR DE BOTAR VIAGEM NO TEMPO EM LIVRO DE FANTASIA?

Deu pra deixar passar em O destino do tigre. Aqui, no entanto, é impossível. Descobrimos que tudo em todos os outros livros foi premeditado pelo Kadam, que usou o Kishan para fazer um monte de coisa acontecer. Ele salvou só a Kelsey do assassinato dos pais dela, quando poderia ter salvado os três, salvou a Anamika criança, e criou todos os desafios que o trio enfrentou e todos os lugares mágicos que eles visitaram (como já mencionado, uns 5 minutos antes deles chegarem).

Ou seja, nada pelo que eles passaram na série original importa. O Kishan está por trás de toda a história de A maldição do tigre. A magia que vimos nos livros não é real. Nossos personagens não têm nenhuma agência de fato, porque tudo foi criado para que eles tivessem sucesso. O risco, a tensão dos últimos quatro livros desaparece, porque descobrimos que nada era real e eles não estavam realmente em perigo em momento algum. Kelsey, Ren e Kishan (o Kishan que estava só vivendo, não pulando de um lado para o outro na linha do tempo) foram manipulados por uma força maior o tempo todo, só que essa força maior é o machista pedófilo do Kishan 2.0 e o sr. Kadam, que conseguiu se tornar insuportável.

A troco de que temos essa viagem no tempo constante? Se eles estão sabe-se lá quantos milênios antes da história principal e são deuses imortais que continuam sendo cultuados até hoje então não faz sentido que eles morram, por que eles não podem fazer os ajustes mínimos para a história acontecer ao longo da vida deles? Kishan alterna entre a sua história e a história de Anamika para fazer tudo acontecer, então a timeline da trama é curtíssima.

Puxa, quase não estou falando da Anamika, não é mesmo?

É porque eu me sinto pessoalmente ofendida por essa personagem.

Anamika é infantilizada, uma vítima de violência sexual que supera seus traumas só por causa de macho e só depois da validação de um macho. O sonho do tigre ignora quem é Durga e sua origem para criar uma personagem que atende perfeitamente aos desejos pervertidos do personagem principal. Ela é uma super guerreira, mas depende do Kishan para defendê-la. É uma adulta, mas briga com ele e age como se fosse uma criança. Tem trauma com homens, então vai tratar todos eles como lixo sem motivo nenhum. E tudo é atirado pela janela quando ela descobre que o Kishan foi o salvador dela anos antes (ah, essa parte também tem um aspecto de grooming impressionante). Dez meses depois de acabar o livro, não me lembro de quase nada dela.

O final de O sonho do tigre foi o que o livro inteiro deveria ter sido – episódios cronológicos da vida de Kishan e Anamika juntos. Eu chorei no final, foi bonito. Sem viagem no tempo, rara e complicada no quarto livro mas utilizada a torto e a direito no quinto, o livro teria sido bem melhor.

Em resumo, eu não posso em são consciência recomendar O sonho do tigre. E digo mais, eu não considero nada que aconteceu nesse livro canon. Eu sempre gostei muito da série e não posso deixar esse livro estragar minha experiência. Os agentes da Colleen Houck quiseram reviver a série só para ganhar dinheiro, o que é a receita para não dar certo.

Se você gostou de O sonho do tigre, de Colleen Houck, você vai gostar de:

His Dark Materials – Philip Pullman;

Heartless – Marissa Meyer;

Mar de tinta e ouro – Traci Chee.

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