Enterre seus mortos – Ana Paula Maia
O trabalho de Edgar Wilson é mais um trabalho dos bastidores, mas importante. Edgar Wilson trabalha para o governo, recolhendo animais mortos nas estradas, jogando-os na caçamba da caminhonete e moendo as carcaças em um triturador.
Um trabalho mórbido e solitário, sem dúvidas; depois de tanto tempo, Edgar Wilson se acostumou. E segue a vida.
Ao seguir um bando de abutres (eles sempre sabem onde estão os corpos), Edgar Wilson acha um corpo com o qual não está acostumado. O cadáver de uma mulher.
O que fazer, o que fazer? O motorista só acha uma solução: levar o corpo da mulher. Os carros do IML não vão chegar a tempo – e a maioria dos institutos está superlotada. Depois de avisar a polícia, Edgar Wilson coloca a mulher na caçamba e segue o dia. No depósito, ele revive um congelador velho e coloca o corpo da mulher lá.
Depois de muita conversa com a polícia, Edgar Wilson gostaria de não ter mais que lidar com cadáveres humanos ou com o sistema. Infelizmente, os IMLs continuam com superlotação – ou com os rabecões quebrados.
E pessoas morrem todos os dias, assim como os animais.
Depois de Enterre seus mortos, é oficial: Ana Paula Maia se tornou minha escritora favorita. “Ai, nossa, mas ela é toda mórbida”, vocês podem pensar. Sim. Ela também é uma das pessoas com a escrita mais agradável que já tive o prazer de ler.
Vamos começar com a capa. Acho vermelho uma cor linda, e juntar a cor do sangue com um abutre foi uma ótima ideia. A diagramação é bem agradável, as letras são grandes (mas não muito grandes) e espaçadas.
A escrita dessa mulher é maravilhosa. Honrando a morbidez, é como uma faca afiada cortando carne. Prazerosa e firme; não é um turbilhão que te impede de se libertar, mas algo como uma ladeira. Muito confortável de se andar, mas não é impossível de parar no final de cada capítulo.
Os personagens de Enterre seus mortos não são heróis. São pessoas relativamente comuns, sem lá grandes complexidades. Não vejo problema nenhum nisso; é bem o estilo da Ana Paula Maia e das histórias dela. Gosto bastante do Tomás, o padre. Percebi, no meio da leitura, que todas as histórias da autora se passam no mesmo universo. Os personagens e as situações de um livro aparecem ou são mencionados em outro, dando aquela pequena sensação de felicidade quando nós, leitores, pegamos as referências.
Ana Paula Maia constantemente traz a nós um Brasil esquecido, quase não visto. Ela faz críticas sociais fortes nas histórias. O foco de Enterre seus mortos foi nas dificuldades das pessoas do interior em conseguir uma ambulância para os vivos ou um rabecão para os mortos. Curiosidade: vocês sabiam que o IML de Curitiba (considerada mais violenta que São Paulo, guardando as devidas proporções de população) hoje opera com muito menos da metade da capacidade? Imaginem como é no interior! Foi isso que a escritora explorou na história, com êxito invejável.
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